top of page

Coringa (2019): Sofrimento ético-político, arquétipo do vilão e violência.

Atualizado: 30 de out. de 2019



Milena Fernandes Farias




I said that's life (that's life), and as funny as it may seem

Some people get their kicks stompin' on a dream

But I don't let it, let it get me down

'Cause this fine old world, it keeps spinnin' around

(That's Life - Frank Sinatra, 1966)



O filme ambientado nos anos 1980 retrata o sofrimento ético-político sentido por Arthur Fleck (Coringa), personagem interpretado por Joaquin Phoenix, Artur é um aspirante a comediante, que vive em condições de vulnerabilidade socioeconômica e realiza trabalhos temporários como palhaço, profissão essa que o deixa vulnerável a diversas formas de agressão e humilhação. Todo esse contexto é um reflexo da cidade de Gothan, que vinha passando por uma crise econômica, com altos índices de desemprego e uma infestação de ratos, situação essa que deixou a população cada vez mais indiferente.


No que se refere ao comportamento do personagem, ele apresenta dificuldade em socializar, apresenta apatia e um distúrbio que o faz rir descontroladamente em situações em que se sente nervoso, desconfortável ou em sofrimento.


No que se refere ao conceito de sofrimento Ético-Político, Sawaia (1994-1995) o definiu como a tristeza advinda do sentimento de estar só e humilhado, por causa de ações legitimadas pela política de exploração e dominação econômica internacional daquele momento histórico. Este sofrimento retrata especificamente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, revelando a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto. ​


Eles estão cagando para pessoas como você. Eles estão cagando para pessoas como eu também. (Sharon Washington – Coringa, 2019)

Esse sofrimento se mostra muito presente diante o questionamento de Arthur diante de suas dificuldades, violências sofridas e descaso de outros em relação a seu sofrimento, durante toda a trama, o personagem tenta compreender porque todos são tão ruins, agressivos e desrespeitosos e então busca acompanhamento psicológico como busca de se livrar dos pensamentos negativos e sentir-se bem.


Você já viu como é La fora Murray? Por acaso você sai do estúdio? As pessoas só gritam e berram umas com as outras, ninguém nunca é educado, ninguém pensa como é estar no lugar do outro cara, pensa por acaso que homens como Thomas Wayne sabem como é ser igual a mim? Ser alguém diferentes deles? Não sabem não. Eles acham que a gente vai ficar sentado e aguentar tudo como meninos bonzinhos, sem ficar revoltado e quebrar tudo. (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

Uma das fontes desse sofrimento de Artur era sua própria família, sendo o conceito de família definido por Cerveny e Berthoud (2009) como aquela que pode formar ou destruir, dar identidade ou desintegrar o indivíduo em formação, ou seja, considerando a visão das autoras podemos dizer que a família do personagem exerceu um papel de destruição e desintegração do indivíduo, o que contribuiu com o desenvolvimento do distúrbio apresentado pelo personagem, pois segundo mostra o filme, Artur nunca soube quem era seu pai biológico e sua mãe foi internada ainda menor de idade por apresentar alucinações e discursos aparentemente sem ligação com a realidade.


Além disso, Artur também sofreu violência física por parte de seu padrasto, principalmente na região da cabeça, o que acarretou danos neurológicos. Além dessas agressões, seu padrasto o mantinha amarrado em um radiador para que não escapasse, aonde chegou a ser encontrado pela polícia, também o obrigava a fingir que estava tudo bem durante as agressões, para que sua mãe não percebesse, e obteve sucesso, além de não perceber o que acontecia, sua mãe ainda o apelidou de “feliz”, repetindo sempre o quanto o filho sempre estava bem e rindo.

Dentro desse contexto então, além de sofrer com as agressões, o personagem também sofreu com a negligência (omissão por parte do cuidador, podendo também derivar de fatores que estão fora de controle do mesmo) da mãe em relação à situação de violência, lembrando que a mesma não possuía consciência a respeito desse comportamento.


Ela diz que eu vim ao mundo para trazer alegria e riso [...] É muito difícil tentar ser feliz o tempo inteiro. (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

Entretanto, ao buscar ajuda o personagem se depara com uma profissional (Sharon Washington) também desacreditada no sistema, que se mantém preocupada apenas em seguir um protocolo de atendimento padrão, deixando de lado a preocupação em realizar uma escuta interessada e ativa deste sofrimento.


O processo de diálogo envolve a nossa imersão na perspectiva do outro e a tentativa de dar sentido à mesma [...] Podemos facilmente nos esquecer que estamos tão acostumados a fazer o que fazemos e sermos influenciados pelas nossas teorias que simplesmente dirigimos no piloto automático. Em outras palavras, esquecer que não existe a necessidade de pensar antes de agir ou falar, ou mesmo que temos que manter em mente que cada relacionamento é único e deve ser tratado como tal. (Anderson, 2016)

Além de um governo despreocupado com a saúde que não compreende os impactos de não se facilitar o acesso de medicamentos a pacientes com distúrbios mais graves, que é o caso de Arthur, deixando-o desamparado e sem condições de realizar um acompanhamento adequado.


Você não me escutou não é? Você faz as mesmas perguntas todos os dias. “Como vai seu trabalho? Está tendo pensamentos negativos?” Só o que eu tenho são pensamentos negativos. (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

Outra fonte de sofrimento do personagem é exatamente sua relação e a relação de outros com seu distúrbio, o que fica claro em sua fala “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”, que se mostra vinculada a própria visão cultural que se têm em relação a doenças mentais, como algo que deve ser marginalizado, oculto, diagnosticado e medicado para ser resolvido, o que se mostra como uma postura inadequada visto que ainda não inventaram uma medicação que por si só solucione questões ligadas ao sofrimento advindo da relação com a sociedade.


A partir disso podemos refletir a respeito do aspecto sociocultural dos medicamentos, a crença que se tem por trás desse uso, a fantasia de uma solução imediata advinda de um imediatismo social que não nos possibilita ter um tempo para sofrer e cuidar desse sofrimento, logo segundo Dantas (2009), o uso abusivo de medicamentos na atualidade parece ser um dos traços significativos de nossa cultura ocidental, na qual impera a convicção de que o mal-estar, bem como o sofrimento de todo gênero, deve ser abolido a qualquer preço, e isso torna a medicalização não apenas um evento isolado, mas sim um conjunto de práticas que possuem o papel de solucionar rapidamente todo e qualquer problema da vida na atualidade.


Sentia-me melhor quando estava preso no sanatório. [...] Parei de tomar meus remédios, estou bem melhor agora. (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

Outro ponto a ser analisado é o quanto esse sofrimento impacta o sentimento do indivíduo em relação ao sentido de sua existência:


Eu nunca fui feliz, nem um minuto da p*rra da minha vida [...] Só espero que minha morte faça mais sentido que a minha vida. (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

Assim como o fato de encontrar na reação violenta, uma maneira de externalizar e amenizar esse sofrimento, “Pensei que iria me arrepender, mas eu não me arrependi”, principalmente ao finalmente ser percebido pela sociedade em relação a qual sempre se viu como invisível “Durante toda a minha vida, eu nem sabia se eu existia de verdade, mas eu existo e as pessoas estão começando a perceber”, o que podemos perceber como um benefício secundário desses comportamentos.


Ser é ser percebido [...] Quando olho, sou visto, logo existo. Meu olhar testemunha minha visibilidade para outro, que me devolve minha própria consistência, meu sentimento de existir. (FRANÇA, 2007, p. 47)

Não só essa percepção por parte da população se mostra como reforçadora, Artur também se sentia estimulado pela possibilidade de ser reconhecido como um justiceiro, um herói, um símbolo que deu voz ao povo que finalmente se revoltara contra o descaso por parte do governo de Gothan.


E por fim o estopim, o momento em que Artur é confrontado por questões do passado relacionadas ao pai, que trás a tona suas idealizações relacionadas ao desejo de ter um pai e de ser acolhido por esse pai “Eu abriria a mão de tudo para ter um filho igual a você.” (alucinação de Joaquim Phoenix – Arthur/Coringa com Robert de Niro – Murray Franklin), juntamente a decepção vivida em relação a seu maior ídolo (pai ideal), Murray Franklin, que ao tomar consciência de sua existência, ao invés de lhe compreender e acolher como sempre idealizou, o humilhou publicamente, acontecimento esse que foi decisivo na mudança de percepção e comportamento de Artur que a partir daquilo passou a se perceber como alguém que não havia mais o que perder “nada mais me machuca”.


Você é péssimo Murray, passando o meu vídeo, me convidando para o show, só queria me transformar em uma piada, você é igual a todos eles [...] Quer ouvir outra piada Murray? O que você consegue quando cruza um doente mental solitário numa sociedade que abandona ele e trata como lixo? Você consegue a merda que merece... “disparos” (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

A partir disto Artur foi então capaz de ressignificar sua visão sobre sua existência “eu pensava que minha vida era uma tragédia e agora eu entendi que é uma p*ta comédia". e passou a lutar contra o sistema que tanto o fere, numa tentativa de ser reconhecido como justiceiro e herói por todos aqueles que, como ele, sofriam.


O sistema que sabe tudo. Vocês decidem o que é certo e errado da mesma forma que decidem o que tem graça ou o que não tem. (Joaquim Phoenix – Coringa, 2019)

No que se refere a representação arquetípica do vilão, sendo o conceito de arquétipo trazido por Jacobi (2017) como fatores e temas localizados no pré-consciente que ordenam elementos psíquicos, formando determinadas imagens arquetípicas, que são expressos no material psíquico consciente e se tornam imagens, Vogler (2011) afirma que o mais próximo do Vilão, é o Arquétipo da Sombra, caracterizado pela representação do lado obscuro, não expresso ou rejeitado da alma humana, repleto de conteúdo reprimido, ou até mesmo de qualidades positivas, mas que, por algum motivo ou outro, estão ocultos, ou foram rejeitados por nós. A face negativa da Sombra é personificada nos Vilões, que são personagens que, de um modo geral, se dedicam à derrota do Herói. A Sombra para a Psicologia tem função de representar os medos e psicoses reprimidos, que não apenas nos prejudicam, mas que ameaçam nos destruir. (GAMBA, 2014)


A partir desses aspectos citados, podemos compreender que o sucesso da trama está fortemente relacionado à maneira como a vulnerabilidade do “vilão” é trazida, é mostrado seu lado mais humano, suas dificuldades, seu sofrimento, e isso se choca com a concepção de “vilão” construída socialmente, o arquétipo do “vilão”, sendo esse vilão, segundo GAMBA (2014) caracterizado por sua oposição à virtude, a personificação do mal puro, de tudo aquilo que é imoral e antiético. Levando-se em conta que a base do enredo melodramático é puramente maniqueísta, sem a maldade do Vilão, não há a definição da bondade do Herói.


[...] não existe nunca, nem na vida nem no teatro, o criminoso puro, o puro vilão; criar um vilão total, um monstro total é erro de mau dramaturgo (a não ser que seja opção de estilo, opção de criação de personagem explícito, mas essa é outra questão). A existência de vários vetores no ser humano, a complicação psicológica, a complexidade da alma do homem são as justificativas e a explicação do conflito interno. Ele é a concretização dessa complexidade. Sua expressão, em atos ou palavras, é a objetivação da colisão interna, ou seja, a atualização (para usar a terminologia aristotélica) de uma de suas potências. (PALLOTTINI, 1989, p. 80)

REFERÊNCIAS


ANDERSON, H. Algumas considerações sobre o convite ao diálogo. Nova perspectiva sistêmica. São Paulo. vol. 25. nº.:56. Dez. 2016


CERVENY, C. M. O.; BERTHOUD, C. M. E. Ciclo vital da família brasileira. In L. C. Osório & M. E. P. Valle (Orgs.), Manual de terapia familiar. Porto Alegre: Artmed. p. 25-37. 2009.


DANTAS, J. B. Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso da medicalização da sociedade. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 3, p. 563-580, Set./Dez. 2009.


GAMBA, J. S. Cara de vilão: aspectos complexos na construção do personagem-tipo do vilão em filmes de horror. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 253 f. 2014.


JACOBI, J. Complexo, arquétipo e símbolo na Psicologia de C. G. Jung. Tradução MOTA, M. C. Ed. Vozes. Petrópolis, RJ. 2017.


JOKER. Directed by Todd Phillips. United States of America: WARNER BROS, 2019. (122 min.).


FRANÇA, A. “Ser imagem para outro”. In: MÉDOLA, A. S. L. D.; ARAÚJO, D. C.; BRUNO, F. (orgs.). Imagem, visibilidade e cultura midiática. Porto Alegre: Sulina. 2007.


PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: A Construção do Personagem. São Paulo: Editora Ática, 1989.


SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Editora Vozes. 2ª ed. 2001​.


VARMA, Devendra P. The Gothic Flame. New York: Russell & Russell, 1966. VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

Comments


Av. Charles Schnneider, 781 - Parque Sr. do Bonfim

 

Spaço Schnneider

Taubaté - SP

  • Facebook
  • Instagram

Tel: (12)99126-9592

bottom of page