NADA ORTODOXA (2020)
- Psicóloga Milena Fernandes
- 13 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 14 de nov. de 2020

Milena Fernandes Farias
A minissérie, baseada em memórias reais de Deborah Feldman, lançada em 2020 é dividida em quatro episódios e mostra a história de Esther Shapiro ou Esty (Shira Haas), uma mulher de família judia ortodoxa, que foi criada por seus avos e sua tia em uma comunidade Satmar em Williamsburg, no distrito nova-iorquino do Brooklyn. Os Satmars são um grupo de judeus ultra-ortodoxos originados na Hungria que, após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceram-se em Nova York. Seu pai, que é alcoolista, demonstra ser muito ausente não só em relação a criação da filha, mas em relação a família como um todo, seu casamento com a mãe de Esty, que não concordava com os dogmas do judaísmo ortodoxo, acabou quando ela decidiu ir embora. Ao longo da série a protagonista acredita que a mãe a abandonou e demonstra muita mágoa por ela, mas ao longo da história Esther descobre que sua mãe tentou conseguir sua guarda, mas foi perseguida pela família de seu pai, assim como Esther ao deixar seu marido.
Algo muito presente na história são as tradições judaicas em relação a escolha dos parceiros, apresentação do casal e preceitos que o casal deve seguir. A protagonista se casou com Yakov Shapiro ou Yanky (Amit Rahav), de família judia ortodoxa tradicional, em um casamento arranjado pelas famílias, quando ainda seguia os dogmas do judaísmo, ou seja, a escolha do parceiro é feita de acordo com o que é percebido como viável para as famílias, como “uma família que tem um comércio” e “que segue os mesmos preceitos religiosos”.
Desde a primeira conversa com o noivo a protagonista deixa claro que é diferente das demais o que a princípio não parece ser um problema para ele, entretanto tudo muda quando as diferenças de Esther vão contra as crenças e leis familiares e religiosas, o que fez com que Yakov passasse a pressionar Esther para que se encaixe no modelo idealizado de esposa e para que sua relação se adequasse também a essas leis, leis que previam que “a mulher deve oficializar o casamento com um filho logo no primeiro ano”, que “as relações sexuais devem existir com a função de procriação toda sexta feira em que a mulher estiver limpa”, ou seja, não menstruada (após a menstruação a mulher deve verificar com um lenço se está limpa e só deve ter relações quando o lenço sair limpo por 7 dias) e de que “o homem deve ficar por cima durante a relação”, entre outras.
Seu casamento só vai dar certo se você tiver um bebê. Entendeu? Precisa ter foco.
(Nada Ortodoxa, 2020)
O padrão de relação do casal com as famílias de origem diz muito sobre suas fronteiras, enquanto Esther demonstra ter uma relação com fronteiras rígidas em relação a família de origem, se comunicando um pouco mais apenas com a avó, Yakov apresenta uma relação com fronteiras difusas, que permitem uma relação com muitas interferências da família de origem na relação do casal, o que passa a gerar muitas expectativas que impactam a relação do casal.
Todas essas expectativas resultam de uma dificuldade em lidar com as dívidas familiares, o que dificulta a diferenciação e autonomia do casal, que apresenta uma escassa diferenciação de si mesmo e um eu fundido a família de origem. Isso fica em destaque quando Yakov se mostra seguindo rigidamente os preceitos e normas de sua família/religião, pressionando Esther, que se mostra mais diferenciada, a se adequar a essas exigências e envolvendo seus familiares na intimidade do casal.
Em uma cena emocionante após o casamento, Esty chora ao ter seu cabelo raspado enquanto é observada por duas meninas mais novas; para o judaísmo ortodoxo, o cabelo é considerado um atributo sensual nas mulheres, portanto mulheres casadas devem cobrir ou raspar seus cabelos, revelando-os apenas na presença de seu marido.
Outra área da vida do casal afetada foi a sexual, pois Esther começou a apresentar sintomas que a princípio foram diagnosticados como vaginismo, caracterizado por contrações espasmódicas e involuntárias dos músculos da parede vaginal no momento da penetração do pênis, o que torna o ato sexual doloroso ou o impossibilita. Para lidar com o problema sua “orientadora” lhe deu um kit para que ela fosse “tratando” essa questão.
Esther considera como deslealdade o compartilhamento de sua intimidade com sua sogra com função de resolução, ao invés de buscar soluções juntos como casal, o que diz muito sobre a comunicação intracasal, onde há uma tentativa de diálogo que devido a desqualificação e invalidação dos sentimentos do outro gera sentimentos de incompreensão, insegurança e crises que levaram Esther a planejar sua fuga em segredo.
Para conseguir sair daquela situação Esther com a ajuda de sua professora de piano vai de Nova York a Berlim, onde sua mãe reside, decisão essa que teve influência de sua mãe, que antes de Esther se casar deu a ela documentos que comprovavam que ela tinha direito a nacionalidade alemã e que tinham a função de dar a ela opções caso ela precisasse.
Porque você fugiu? Deus esperava muito de mim. Agora preciso achar meu próprio caminho.
(Nada Ortodoxa, 2020)
Decisão essa que a princípio Esther não compreendia, mas que após vivenciar de perto o peso dos dogmas passou a compreender melhor as dificuldades que a mãe vivenciou em seu casamento com o pai e que foram, de certo modo, utilizadas por Esther como uma possibilidade de solução de aspectos problemáticos que trazia desde a sua origem, percebidas ao vivenciar conflitos em seu casamento que ampliaram sua percepção acerca das semelhanças entre a relação de seus pais e a relação que havia estabelecido com o marido, no que se refere às proibições e normas rígidas de sua comunidade religiosa e o sofrimento advindo da não adequação a essas normas.
Ao chegar em Berlim Esther conhece um grupo de músicos que a ajudam a conquistar seu sonho de ser musicista, sonho esse que teve de abandonar a pedido do marido por ser considerado inadequado aos olhos da sua comunidade religiosa. Nesse momento Esther é levada a assumir as rédeas e a responsabilidade sobre sua vida e suas escolhas e a conhecer na realidade aquilo que até então só havia vivido em suas fantasias e que estavam em desacordo com as imposições da comunidade em que vivia.
Ao longo do seu processo de autodescoberta Esther experimenta uma série libertações das proibições sob as quais vivia, experimentando calças jeans, maquiagem, indo a boates, se aproximando da sua mãe que vivia uma relação homoafetiva e ao se libertar de todas essas imposições encontrou não só um espaço para sua história em sua vida, resgate demonstrado ao cantar uma das músicas de sua religião em sua audição, mas também conseguiu expressar sua sexualidade de forma prazerosa sem dor.
Quando Esther finalmente se despe de sua peruca e mergulha nas águas de um lago simbólico em Berlim, ela finalmente experimenta a sensação de libertação.
Enquanto vivia sua jornada de autodescoberta, Yakov a procurava junto ao seu primo, para levá-la de volta a sua comunidade após descobrirem que Esther estava carregando um filho seu, entretanto enquanto Yakov buscava resgatar sua relação de forma pacífica, seu primo fez uma série de ameaças a Esther e sua mãe, ameaças essas que consideravam que se Esther não voltasse para o seu marido não seria capaz de se manter sozinha. Ao final a mãe de Esther a defende e Yakov consegue assistir a sua audição, percebendo seu talento e as proibições que havia imposto sobre ela, o que o fez cogitar abrir mão de suas crenças para recuperar seu casamento, mas já era tarde.
REFERÊNCIAS
ANGELO, C. A escolha do parceiro. A crise do casal, p. 47-57, 1995.
BOWEN, M.; ANDOLFI, M.; DE NICHILO, M.. De la familia al individuo: la diferenciación del sí mismo en el sistema familiar. Barcelona: Paidós. p. 46-56, 1991.
BOSZORMENYI–NAGY, I., & SPARK, G. M. Lealtad in Lealtades Invisibles: Reciprocidad en terapia familiar intergeneracional. Buenos Aires: Amorrortu. p. 54-71, 1983.
ZERBINI, M. I. S. Mitologias na Intimidade Amorosa. (A ser publicado)
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